Acordo negociado em segredo
entre a UE e o Canadá

CETA – o comércio «livre»<br>ao serviço das multinacionais

Miguel Viegas
O CETA, acordo de livre co­mércio entre a União Eu­ro­peia e o Ca­nadá («EU – Ca­nada Com­prehen­sive Eco­nomic and Trade Agre­e­ment», na sigla in­glesa) co­meçou a ser ne­go­ciado em 2009, sob o mais ri­go­roso se­cre­tismo. Ao con­trário do TTIP, outro acordo ac­tu­al­mente em fase de ne­go­ci­ação entre a Co­missão Eu­ro­peia e os Es­tados Unidos, que tem sus­ci­tado muita dis­cussão e muita luta, o CETA não foi ob­jecto de de­bate du­rante a fase de ne­go­ci­ação.

A en­trada em vigor deste Acordo re­pre­senta um pe­rigo não só pelos termos do acordo em si, mas também pelo pre­ce­dente que abre a fu­turos acordos deste tipo. Não é por acaso que o CETA tem sido ape­li­dado de ca­valo de Tróia do TTIP

LUSA

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Im­porta con­tudo cla­ri­ficar que, se a dis­cussão do TTIP passou para o de­bate pú­blico, isso deve-se a uma fuga de in­for­mação que re­velou um con­junto de do­cu­mentos com­pro­me­te­dores que ime­di­a­ta­mente fez le­vantar um coro de pro­testo por toda a Eu­ropa. Assim não acon­teceu com o CETA. Desta forma, foi com este pro­fundo dé­fice de­mo­crá­tico que a Co­missão Eu­ro­peia apre­sentou no início de 2016 a versão de­fi­ni­tiva do acordo, com as suas 1600 pá­ginas. Não sur­pre­ende por isso, que os pro­testos e as mo­bi­li­za­ções de inú­meras pes­soas, par­tidos, sin­di­catos, as­so­ci­a­ções di­versas e até par­la­mentos na­ci­o­nais e re­gi­o­nais, te­nham sur­gido apenas nesta fase ter­minal do pro­cesso, uma vez que todos foram com­ple­ta­mente ar­re­dados das ne­go­ci­a­ções e do co­nhe­ci­mento prévio do con­teúdo do Acordo.

O co­mércio in­ter­na­ci­onal não cons­titui um fe­nó­meno re­cente. David Ri­cardo, emi­nente eco­no­mista in­glês do sé­culo XVIII, já tinha iden­ti­fi­cado as cha­madas van­ta­gens com­pa­ra­tivas do co­mércio in­ter­na­ci­onal, usando o cé­lebre exemplo das trocas de vinho do Porto lu­si­tano por pro­dutos têx­teis in­gleses. Largas cen­tenas de acordos bi­la­te­rais e mul­ti­la­te­rais de co­mércio foram já ne­go­ci­ados nas mais va­ri­adas re­giões do globo. Im­porta por isso per­guntar o que di­fe­rencia este CETA dos an­te­ri­ores e por que razão tem sus­ci­tado tanto de­bate e tanta luta por parte das po­pu­la­ções e de am­plos sec­tores pro­du­tivos. Uma res­posta pos­sível passa pela aná­lise da evo­lução do sis­tema ca­pi­ta­lista e da sua ne­ces­si­dade de adaptar a super es­tru­tura ins­ti­tu­ci­onal por forma a con­so­lidar o seu do­mínio e limar qual­quer en­trave à con­cen­tração ca­pi­ta­lista e ao do­mínio eco­nó­mico im­pe­ri­a­lista.

Um avanço qua­li­ta­tivo
no co­mércio in­ter­na­ci­onal

O mundo está hoje com­ple­ta­mente do­mi­nado por al­gumas cen­tenas de mega-em­presas e grupos mul­ti­na­ci­o­nais por onde passa a mai­oria dos fluxos co­mer­ciais e que são também res­pon­sá­veis pela es­ma­ga­dora mai­oria do in­ves­ti­mento trans­na­ci­onal. A ne­ces­si­dade de en­con­trar es­tru­turas, acordos ou ins­ti­tui­ções acima dos es­tados na­ci­o­nais que possam velar pelos seus in­te­resses e ajudar a vencer even­tuais re­sis­tên­cias dos tra­ba­lha­dores e dos povos no âm­bito na­ci­onal re­pre­senta um ele­mento fun­da­mental que nos dá pistas para com­pre­ender o al­cance deste acordo.

No preâm­bulo do CETA, são sa­li­en­tadas duas pre­o­cu­pa­ções de fundo: eli­minar ta­rifas adu­a­neiras e limar as cha­madas bar­reiras téc­nicas ou re­gu­la­men­tares. Sob uma re­tó­rica não ino­cente, pro­cura-se ali­mentar a ne­ces­si­dade de eli­minar en­cargos me­ra­mente ad­mi­nis­tra­tivos que oneram os pro­dutos e di­fi­cultam o co­mércio in­ter­na­ci­onal, omi­tindo de­li­be­ra­da­mente a na­tu­reza e as causas destas ditas bar­reiras re­gu­la­men­tares. Como fi­cará claro mais à frente, estas existem não por qual­quer ca­pricho deste ou da­quele país ou re­gião, mas sim para de­fender le­gí­timos in­te­resses na­ci­o­nais, ou para de­fender di­reitos so­ciais, la­bo­rais, de se­gu­rança ali­mentar ou ainda de saúde pú­blica. Ao pro­curar eli­minar estas normas, ou ni­velá-las por baixo, a Co­missão Eu­ro­peia re­vela o seu com­pleto des­prezo pelo di­reito dos es­tados na­ci­o­nais de de­ci­direm a me­lhor forma de ga­rantir o bem-estar das po­pu­la­ções e dos tra­ba­lha­dores. Im­porta re­ferir que esta questão das normas re­gu­la­men­tares re­pre­senta a pedra de toque do acordo, uma vez que as ta­rifas adu­a­neiras ou já não existem ou são muito baixas. Desta forma, o acordo CETA não é apenas mais um acordo de co­mércio, com o es­ta­be­le­ci­mento de pautas adu­a­neiras co­muns ou de quotas de im­por­tação e ex­por­tação. Pela sua na­tu­reza, pelos seus ob­jec­tivos e pelo seu con­teúdo, o CETA as­sume-se como um tra­tado com valor cons­ti­tu­ci­onal na me­dida em que es­ta­be­lece prin­cí­pios e ór­gãos ins­ti­tu­ci­o­nais acima dos go­vernos, des­ti­nados a con­cre­tizar estes mesmos prin­cí­pios. Em traços ge­rais, o tra­tado prevê duas grandes ins­ti­tui­ções. A pri­meira tem a ver com a co­o­pe­ração re­gu­la­mentar. Tendo em conta a com­ple­xi­dade das ma­té­rias e as di­nâ­micas pró­prias da eco­nomia e da pro­dução, estão pre­vistos vá­rios or­ga­nismos (fórum para a co­o­pe­ração re­gu­la­mentar, co­mités es­pe­cí­ficos sec­to­riais, etc.) en­car­re­gados de forçar a har­mo­ni­zação, re­vendo na­tu­ral­mente em baixa todo o acervo re­gu­la­mentar seja ele de cariz so­cial, la­boral, am­bi­ental ou hi­gieno-sa­ni­tário. Nestes or­ga­nismos, para além dos tec­no­cratas ha­bi­tuais, terão igual­mente voz vá­rias or­ga­ni­za­ções, e por essa via, a pre­sença as­sídua dos grandes lob­bies in­dus­triais de ambos os lados do Atlân­tico. O me­ca­nismo de re­so­lução de li­tí­gios (o co­nhe­cido ISDS) des­ti­nado a fun­ci­onar como um órgão ar­bi­tral acima dos es­tados na­ci­o­nais re­pre­senta outra pé­rola deste tra­tado. Pese em­bora as al­te­ra­ções de cos­mé­tica in­tro­du­zidas na fase final em res­posta aos pro­testos ge­ne­ra­li­zados que se fi­zeram sentir ao longo do cor­rente ano, este me­ca­nismo mantém todos os seus po­deres para pro­teger os in­te­resses das mul­ti­na­ci­o­nais, co­lo­cando assim o lucro destas em­presas acima da so­be­rania dos es­tados e do bem-estar dos seus ci­da­dãos.

Em suma, sob a capa de um acordo de co­mércio cha­mado de «livre co­mércio», o que este CETA re­pre­senta é um ins­tru­mento de novo tipo, ao ser­viço do ca­pital, capaz de cer­cear a so­be­rania dos es­tados e o di­reito dos povos de de­fi­nirem as po­lí­ticas em função do seu in­te­resse e do in­te­resse dos seus países. Ou seja, a pa­lavra «livre», sempre as­so­ciada a este tipo de acordos, sig­ni­fica ver­da­dei­ra­mente a li­ber­dade de ex­plorar, de do­minar e de sub­meter es­tados e povos aos in­te­resses do grande ca­pital trans­na­ci­onal.

Con­sequên­cias
mais ne­fastas do acordo

O CETA abrange pra­ti­ca­mente todos os ramos da eco­nomia e da so­ci­e­dade. Por isso o seu al­cance é enorme. Para ilus­trar esta ideia, basta re­ferir o prin­cípio da «lista ne­ga­tiva» que pre­va­lece em todos os ca­pí­tulos e anexos. Ou seja, nestas listas re­fere-se os do­mí­nios que ficam fora do acordo, fi­cando sub­ja­cente a ideia de que tudo o resto passa a ser abran­gido. Não é pos­sível neste ar­tigo tratar todos os sec­tores. Por isso, apenas tra­ta­remos dos ser­viços pú­blicos, do sector agro­a­li­mentar e dos di­reitos dos tra­ba­lha­dores, dei­xando de fora sec­tores im­por­tantes que aqui não cabem de­vido aos cons­tran­gi­mentos de es­paço.

Os ser­viços pú­blicos cons­ti­tuem um exemplo pa­ra­dig­má­tico da re­tó­rica ilu­si­o­nista da Co­missão Eu­ro­peia e dos de­fen­sores do acordo. Dizem-nos que os ser­viços pú­blicos estão sal­va­guar­dados. Con­tudo, ao ler os termos do acordo, o que é dito no res­pec­tivo ca­pí­tulo é que ficam de fora os ser­viços pú­blicos for­ne­cidos em re­gime de mo­no­pólio pú­blico ou es­tatal, e ainda por cima, su­jeito a uma lista ne­ga­tiva ex­tre­ma­mente li­mi­tada. Ou seja, temos por um lado uma si­tu­ação em que a es­ma­ga­dora mai­oria dos ser­viços pú­blicos foram já pri­va­ti­zados ou fun­ci­onam num ló­gica de con­cessão, fi­cando por isso abran­gidos pelo CETA que obriga a aber­tura dos cha­mados mer­cados pú­blicos às em­presas ca­na­di­anas. Por outro lado, temos um pressão for­tís­sima das ins­ti­tui­ções eu­ro­peias a tentar forçar as ditas re­formas es­tru­tu­rais com o des­man­te­la­mento das fun­ções so­ciais do Es­tado e a in­tro­dução de ló­gicas mer­cantis a todas as áreas até há pouco tempo abran­gidas pelo pe­rí­metro do ser­viço pú­blico. Es­tamos a falar não só da edu­cação e da saúde, como também da energia, dos trans­portes, dos ser­viços pos­tais e da ha­bi­tação. Fi­nal­mente, existe a regra do tor­ni­quete que im­pede qual­quer re­tro­cesso nesta ma­téria. O que sai da es­fera pú­blica não volta mais. Aí está a fa­mosa «de­fesa» dos ser­viços pú­blicos.

A questão da agri­cul­tura e dos bens ali­men­tares tem tido um justo des­taque tendo em conta o im­pacto do CETA na pro­dução, mas igual­mente da saúde dos con­su­mi­dores. Mais do que su­bli­nhar o fosso que nos se­para do Ca­nadá em ma­téria de se­gu­rança ali­mentar (OGM, fac­tores de cres­ci­mento, hor­monas etc.), im­portar con­frontar os dois mo­delos pro­du­tivos na Eu­ropa e no Ca­nadá. Numa re­a­li­dade que é di­nâ­mica, e apesar das ten­dên­cias li­be­ra­li­zantes, a agri­cul­tura no es­paço da União Eu­ro­peia ainda está ra­zo­a­vel­mente as­sente na pe­quena pro­pri­e­dade e em normas que obe­decem ao prin­cípio de pre­caução que inibe o uso de um vasto con­junto de subs­tân­cias pro­fu­sa­mente uti­li­zadas no Ca­nadá, onde pre­va­lece a agri­cul­tura in­ten­siva em larga es­cala. Assim, o acordo prevê con­tin­gentes de cen­tenas de mi­lhares de to­ne­ladas de carne bo­vina e suína, que não dei­xarão de en­trar no nosso mer­cado apesar de a pro­dução na União Eu­ro­peia ser ex­ce­den­tária nestes do­mí­nios. Quem e como vão ser feitos os con­trolos quando sa­bemos que a ló­gica do con­trolo ao longo de toda a ca­deia de pro­dução apenas existe na União Eu­ro­peia? No Ca­nadá, o con­trolo é feito apenas no fim da linha, daí a prá­tica usual de de­sin­fectar car­caças com cloro para mas­carar de­fi­ci­ên­cias de hi­giene a mon­tante. Fi­nal­mente temos as de­no­mi­na­ções ge­o­grá­ficas que ficam sem pro­tecção uma vez que o acordo apenas re­co­nhece cen­tena e meia das mais de duas mil exis­tentes nos es­tados membro da UE.

Cu­ri­o­sa­mente, ao longo das mais de 1600 pá­ginas do acordo, não existe uma única cláu­sula sobre di­reitos hu­manos. Quanto ao ca­pí­tulo sobre as leis la­bo­rais (ca­pí­tulo 23) apenas vemos vagos apelos à ma­nu­tenção dos ní­veis ac­tuais de pro­tecção das leis la­bo­rais em vigor no Ca­nadá e na UE. Não existe um único me­ca­nismo para con­trolar ou forçar as partes a não baixar os ní­veis de pro­tecção dos tra­ba­lha­dores e evitar um mais que pre­vi­sível dum­ping le­gis­la­tivo em ma­téria la­boral. É bom re­ferir que o Ca­nadá não re­pre­senta ne­nhum exemplo nesta ma­téria. Grande parte das 190 con­ven­ções da Or­ga­ni­zação In­ter­na­ci­onal do Tra­balho não foram ra­ti­fi­cadas pelo Ca­nadá. Ci­temos a tí­tulo de exemplo a con­venção sobre con­tra­tação co­lec­tiva (N98) ou sobre hi­giene e se­gu­rança no tra­balho (N155) ou ainda sobre a idade mí­nima para en­trar no mer­cado de tra­balho (N38). Quanto à con­venção sobre pro­tecção dos tra­ba­lha­dores mi­grantes (N97 e 143), nem vê-la.

Em suma, o CETA, como ins­tru­mento ao ser­viço do grande ca­pital, re­pre­senta uma muito má no­tícia para os tra­ba­lha­dores. Pre­tende au­mentar a con­cor­rência à es­cala in­ter­na­ci­onal le­vando os es­tados e as re­giões a fazer baixar os ní­veis de pro­tecção so­cial e la­boral por forma a atrair o in­ves­ti­mento es­tran­geiro pre­dador. E ao con­trário dos di­reitos dos tra­ba­lha­dores que não dis­põem de ne­nhum ins­tru­mento para a sua de­fesa, as mul­ti­na­ci­o­nais não dei­xarão de usar o me­ca­nismo de re­so­lução de li­tí­gios (ISDS) para co­locar em causa di­reitos e even­tuais avanços so­ciais que possam pôr em causa os seus lu­cros.

A luta ne­ces­sária

A en­trada em vigor deste Acordo re­pre­senta um pe­rigo não só pelos termos do acordo em si, mas também pelo pre­ce­dente que abre a fu­turos acordos deste tipo. Não é por acaso que o CETA tem sido ape­li­dado de ca­valo de Tróia do TTIP. Por um lado, a pre­sença de cen­tenas de fi­liais norte-ame­ri­canas em ter­ri­tório ca­na­diano irá per­mitir a estas be­ne­fi­ciar de todas as van­ta­gens do TTIP ainda que o mesmo não venha a ser apro­vado. Por outro, a apro­vação do CETA visa des­mo­bi­lizar muitos da­queles que lutam por um outro mo­delo de re­la­ci­o­na­mento co­mer­cial entre países, ten­tando-se assim re­lançar o pro­cesso ne­go­cial do TTIP que está neste mo­mento em «banho-maria». E de­si­ludam-se aqueles que apostam no ale­gado pro­tec­ci­o­nismo da nova ad­mi­nis­tração norte-ame­ri­cana. Tra­tando-se do in­te­resse das mul­ti­na­ci­o­nais todos irão con­vergir no mesmo, in­de­pen­den­te­mente de di­fe­renças de es­tilo ou tác­tica.

Após um in­te­res­sante mas curto pe­ríodo de re­sis­tência pro­ta­go­ni­zado pelo go­verno re­gi­onal da Va­lónia (Bél­gica), o acordo acabou por ser apro­vado pelo Con­selho Eu­ropeu após al­gumas con­ces­sões cos­mé­ticas sem qual­quer sig­ni­fi­cado. In­fe­liz­mente o Go­verno por­tu­guês fi­cará para a me­mória como um dos en­tu­si­astas deste Acordo. Segue-se agora a apro­vação pelo Par­la­mento Eu­ropeu e a ra­ti­fi­cação por parte dos par­la­mentos na­ci­o­nais. Si­mul­ta­ne­a­mente per­siste a ina­cei­tável e ilegal pre­tensão da Co­missão de forçar a en­trada em vigor do Acordo sem estar con­cluído o pro­cesso de ra­ti­fi­cação, mais uma prova do real valor que a Co­missão dá às pa­la­vras «de­mo­cracia» e «so­be­rania». Pela parte do PCP, que já se pro­nun­ciou de forma inequí­voca contra o tra­tado e contra a sua en­trada em vigor par­cial até à ra­ti­fi­cação na­ci­onal, pen­samos que a luta pode e deve con­ti­nuar. Uma ba­talha pelo es­cla­re­ci­mento, pela mo­bi­li­zação e também pela ne­ces­si­dade de con­trapor um outro mo­delo de co­o­pe­ração in­ter­na­ci­onal as­sente no prin­cípio das van­ta­gens mú­tuas e no res­peito pela so­be­rania de cada Es­tado.